Acidentei-me pesquisador por conta e obra de um mestrado que me proporcionou revelar um riquíssimo caso de autocensura editorial no Brasil, na década de 1970, envolvendo a linha de montagem de uma casa publicadora carioca – a Ediouro – especializada em “ficção ligeira” (como a chamava Hallewell), incluída aí a Mister Olho, vasta coleção de livros de bolso infantis publicada durante a ditadura, entre 1973 e 1979. A descoberta de um manuscrito inédito, pousado em uma caixa de arquivo por quarenta anos, despertou em mim certo gosto pelo mistério biográfico-literário a que se juntou um interesse pelos mecanismos que promovem o silenciamento de textos: tanto os da censura explícita e implícita, motivada por conjunturas políticas violentas e de exceção, quanto os que derivam da separação entre as tradições culturais.
Em seu minucioso Cultura popular na Idade Moderna, de 1978, Peter Burke reserva muitas páginas à discussão dos limites conceituais de seu escorregadio objeto (quem pode pensar em binômio mais espinhoso que este envolvendo os termos “cultura” e “popular”…?) e parece se satisfazer em torno do modelo do antropólogo social Robert Redfield, para quem havia dois tipos de tradições culturais: uma “grande tradição” cultivada por uma minoria culta (a dos textos clássicos, da Antiguidade, etc.) e uma “pequena tradição” pertencente aos demais, restando clara uma comunicação entre seus usos, participações e processos. Se aqui a oposição marca também algumas outras, como escrita/oralidade e autoria/anonimato (ou individualização versus coletivização da criação), a proposta de Redfield – que é dos anos 1930, e que Burke aproveita para abordar um período de transição entre modos de ver e simbolizar o mundo (em especial, a baixa Idade Média) ainda distante de nossa indústria de cultura de massa – parece igualmente adequada para explicar as dinâmicas que pautam a produção e o consumo de literatura ainda neste vigésimo ano do século XXI.
Ao percorrer as páginas online dos principais jornais enquanto esperava a água ferver para o café, uma notícia me chamou a atenção de maneira tão irresistível que pouco depois me vi aqui, traçando este relato mais resenha que artigo, mais estupefação que vias de fato. Dizia a chamada, esperando meu clique de mouse: “Livro inédito de John Steinbeck não será lançado por ser considerado ‘menor’”.
Para minha surpresa, não se tratava de algo como um Terra do Pecado, primeiro romance de Saramago publicado em 1947, que o autor depois renegara e não queria ver reeditado, por considerá-lo obra imatura (menor?), mas sim de uma persistente resistência às construções literárias mais populares, nas quais se inserem as literaturas de gênero como a ficção científica, os livros para crianças e as narrativas criminais. A matéria do Estadão (na verdade, tradução de um artigo do New York Times) tratava de um manuscrito completo do consagrado John Steinbeck (um dos luminares máximos da literatura norte-americana), escrito em 1930 e nunca publicado, descoberto por um pesquisador (como eu…), em um acervo institucional literário no Texas. Intitulado Murder at full moon, o manuscrito de 233 páginas é nada menos que um romance popular escrito por Steinbeck em nove dias, pouco depois de ele já ter publicado um livro de aventuras de piratas, no qual ele procura misturar gêneros populares à época na tentativa de ganhar o pão: temos aqui, senhores, assassinato, investigação e… um lobisomem como suspeito.
A despeito dos esforços do descobridor da relíquia literária, o professor da Universidade de Stanford, Gavin Jones, de ver o material publicado, o espólio do escritor falecido em 1968 recusa-se a legitimar (são minhas as palavras) o manuscrito com uma impressão oficial, por considerá-lo um esforço menor (e depreciador…) de um artista conhecido por obras-primas seminais como As vinhas da ira e Ratos e homens.
Perto de fecharmos um quarto adentro deste século no qual as telas multiplicaram nossas leituras por conta de sua ubiquidade luminosa, alguns textos ainda enfrentam a ameaça da escuridão das gavetas. E é uma pena constatar que sofrem esse perigo, seja Murder at full moon, de Steinbeck, em 2021, ou O caso do rei da casa preta, de Ganymédes José (o tal livro infantil autocensurado que me empurrou para a vida de pesquisador), em 1974, por – mesmo no âmbito da autoria e da escrita – serem considerados parte de uma “pequena tradição”, párias canônicos. Hoje, hoje ainda…
REFERÊNCIAS
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Média. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
MURPHY, Heather. Livro inédito de John Steinbeck não será lançado por ser considerado ‘menor’. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,livro-inedito-de-john-steinbeck-nao-sera-lancado-por-ser-considerada-menor,70003732862. Acesso em: 1 ju. 2021.
Como sempre seus textos são generosos em mais de uma maneira. Tanto na abertura para o novo como pelos insights que propícia.Sem dúvida a leitura dos clássicos greco-latinos e dos seus interlocutores ao longo do tempo constitui uma espécie de cordão de ouro que tem de fato feito a diferença no avanço da Civilização.O Renascimento dever muitos aos humanistas, que trouxeram esses textos novamente à tona, como é o caso de De rerum natura, que traz de volta Epicuro, protagonista de uma revolução que aínda está em curso. Por outro lado, produto dessa revolução foi criada essa nova cultura que V menciona e é de fato um campeão em sua defesa. E tudo isso e, finalmente, novo e antigo, o que me parece saudável.