Resenha de “Paisagens noturnas”, de Vera carvalho assumpção (Pedro Sasse)

Evocando já no título o motif que unirá a investigação do misterioso assassinato de uma professora bem quista pela comunidade a uma série de pinturas sombrias e a estranha coincidência de seus donos, Paisagens noturnas, da finalista do I Prêmio da Associação Brasileira de Romance Policial, Suspense e Terror, Vera Carvalho Assunção, pinta, à sua maneira, também um pitoresco quadro que mistura as cores da violência, das drogas e do sexo em uma São Paulo fortemente influenciada pela tradição do noir.

Gostaria de começar essa leitura por um curioso comentário tecido pelo narrador sobre Noite na taverna, de Álvares de Azevedo – uma referência frequente na obra e crucial para o desenvolvimento tanto dos personagens quanto do mistério:

Enfim, era um amontoado de cenas extravagantes e narrações monstruosas que caracterizavam a literatura dos românticos europeus. Talvez, para escrever tais cenas, ele tenha se inspirado mais nos livros vindos da Europa do que na sua própria experiência de vida (2020, p. 132)

Não sei se consciente ou inconscientemente, a observação feita pelo narrador, em tom crítico, espelhando, talvez, os pensamentos do próprio detetive Alyrio Cobra, encontrará um irônico paralelo no próprio plano metanarrativo: Paisagens noturnas parece, também, mais inspirado nos livros vindos da Europa – e dos EUA – do que necessariamente na própria experiência de vida de sua autora.

O comentário não deve ser tomado como uma crítica, o que apenas reforçaria ou coro dos puristas que tomam a produção nacional como uma cópia de segunda categoria daquilo que é produzido em língua inglesa, ou o dos nacionalistas que veem o gênero como uma negação de uma realidade nacional que deveria ser utilizada como baliza única do juízo estético. A questão que nos é posta diante de um romance policial brasileiro nos moldes da tradição é: o que essa emulação pode nos dizer sobre a circulação do gênero no país hoje?

Enquanto, como defendo em minha tese, é possível ver uma literatura centrada no crime se desenvolvendo de forma mais ou menos autônoma na literatura brasileira e em outras literaturas nacionais, ganhando contornos e consolidando convenções distintas às do romance de enigma de tradição britânica, a ficção detetivesca stricto sensu, dentro desse campo amplo e heterogêneo das narrativas criminais, é um gênero traçado a partir da configuração específica que essa literatura de crime adquiriu, sobretudo, na Inglaterra e nos EUA, sendo, posteriormente apropriada e modificada conforme circulava pelos mais diversos contextos sociais e culturais.

Dessa forma, como estudioso da narrativa criminal no Brasil, observo que nossa produção poderia ser divida, pelo menos, nesses dois grandes recortes: uma narrativa criminal independente das convenções do molde detetivesco tradicional, que, aqui, ganhou forma de uma literatura voltada para a representação não das investigações, mas dos criminosos e suas atrocidades; e outra que, de uma maneira mais explícita, assume seu alinhamento às convenções do gênero, tentando adaptar o molde detetivesco tradicional ao cenário nacional – ou, em alguns casos, mantendo, mesmo a ambientação estrangeira. Paisagens noturnas definitivamente se alinha a esse segundo caso, basta que se veja o protagonista da obra, o detetive Alyrio Cobra.

Presente como investigador central não só de Paisagens noturnas, mas também de outros romances de Assumpção, Cobra aponta para a aderência a uma forte convenção do gênero, a sequencialidade episódica, ou seja, a produção de uma série de romances com relativa independência narrativa em que o investigador serve como ponto, se não único, principal de coesão. Como vemos de forma muito clara no eternizado caso de Holmes, por mais que as histórias protagonizadas pelo detetive se encerrem – geralmente na típica estrutura consolatória de retorno à ordem –, sua jornada prossegue, em uma sequência aberta de novos enredos seguindo padrão semelhante. Diferente do que tende a ocorrer, por exemplo, nas séries de ficção científica e fantasia, não é tanto o mundo ficcional que se aprofunda, mas o próprio detetive que se desenvolve e complexifica ao longo dos romances, propiciando, assim, as condições de variação necessárias para se criar diferença em uma estrutura narrativa de grande rigidez convencional.

Referida nos paratextos como um romance noir, Paisagens noturnas claramente bebe dos mais típicos romances hardboiled, a começar pela própria profissão de Cobra, não o entusiasta amador da escola britânica, mas o private investigator que se consolida na norteamericana. Na superfície, todos os elementos da fórmula encontrarão coincidência, como podemos ver já no primeiro capítulo: a agência decadente – em que um pode facilmente imaginar a típica sombra das persianas sobre a mesa –, a vida amargurada, um passado conturbado, o gosto pelo álcool – lhe falta, talvez, apenas o cigarro para um retrato completo e fiel.

A focalização narrativa também é herdada das convenções do hardboiled. Como nos lembra Todorov, um dos grandes diferenciais entre as aventuras no molde de Sherlock e aquelas eternizadas por Chandler e Hammett se dá no uso do tempo narrativo na construção da investigação. No modelo tradicional britânico, detetive e crime não coincidem temporalmente, a investigação é um olhar para o passado, um problema sobretudo epistemológico, uma incógnita a ser resolvida. Já no modelo hardboiled, ainda que um crime sirva também de mola propulsora para a narrativa, a investigação está imersa no presente, o detetive está em constante ameaça, encontrar o culpado é mais uma questão de sobrevivência (seja para neutralizar uma ameaça ou para simplesmente ser pago) do que o prazer da revelação de um mistério.

No entanto, é aqui que Cobra se torna peculiar. Ainda que exposto ao perigo, como bom detetive hardboiled, por baixo do verniz, não resta muito do detetive durão que geralmente encarna o romance noir. Lembro-me aqui, de uma observação de Ernst Mandel, em Delightful Murder, sobre a impossibilidade de se imaginar Poirot, Peter Wimsey ou o padre Brown no típico cenário violento do hardboiled. Se mesmo Sherlock, longe das ameaças da máfia americana, era um exímio boxeador, o detetive de Paisagens noturnas parece bem pouco preparado para lidar com as ameaças diretas a que se expõe no dia a dia das investigações. Sem, tampouco, a capacidade de dedução, domínio da ciência ou poder de observação sobre-humano utilizado pelos armchair detectives para manter a distância segura dos crimes, Alyrio tateia, carente de brilhantismo ou força, de forma errante pelo ofício – lhe sobra, ao menos, coragem.

Essa curiosa mistura o aproxima do que eu gosto de chamar da categoria dos detetives precários, uma forte marca nacional no gênero desde suas raízes: investigadores que, apesar do empenho, lidam com a realidade de uma total ou quase completa falta de especialização para exercer a função, e o acabam fazendo não por sua excelência, mas pela força das condições – investigadores de uma polícia sem preparo ou recursos, entusiastas da ficção detetivesca com mais vontade que capacidade, investigadores privados mais preocupados em encontrar um caso de traição que pague as contas do que em trazer à luz um criminoso perigoso. O próprio Alyrio reforça a tese: “Como gostaria de estar num filme norte-americano, desses em que o detetive sempre descobre tudo” (p. 186). Mesmo nos aspectos que consegue absorver do detetive hardboiled arquetípico, como o gosto pelo álcool, essa precariedade fica à mostra: “Não tinha sequer uma bebida preferida, como todos os detetives da literatura policial. Bebia o que estivesse ao alcance da mão e do bolso”.

Se há, no entanto, uma característica em que a narrativa de Paisagens noturnas acaba sendo fiel ao modelo hardboiled é na representação feminina, característica curiosíssima se pensarmos o contexto de produção da obra e sua autoria. Entusiastas da sexualização exacerbada que marca a literatura popular por boa parte do séc. XX, não é raro ver nas obras da escola americana de literatura de crime a mulher sendo representada majoritária, se não unicamente, como um potencial interesse sexual do detetive. No romance de Assumpção, poucas escapam dessa caracterização: da adolescente amante da vítima à diretora da escola, todas são, pelo menos, introduzidas na narrativa através de seus atributos físicos, mostrando que Alyrio absorveu, talvez, apenas a parte mais repreensível de seus colegas do Norte. Mesmo quando uma personagem feminina aparece sem ser marcada por essa sexualização, sua descrição se dará não por outros atributos, mas por uma, digamos, sexualização negativa: “A mulher que entrou não tinha atrativos físicos evidentes e nem qualquer aura de sensualidade” (p. 99).

Unidos na visão sobre o gênero feminino, Alyrio se distancia do hardboiled quando o assunto é a representação do crime. Produzidas em forte diálogo com a ficção de gângsteres que se desenvolvia na primeira metade do séc. XX, as narrativas investigativas americanas costumam retratar o mundo em que o crime organizado já é uma realidade clara, palpável e ameaçadora. No Brasil, na década de 30, João de Minas já publicava narrativas mostrando que, longe de um problema exclusivo de Chicago, São Paulo tinha o necessário para ser também um território tomado pelo crime organizado. Com a ascensão de uma narcoliteratura a partir dos anos 90, no boom da literatura marginal, ficou até mesmo difícil dissociar a nossa narrativa criminal ao tema. É nesse ponto que, acredito, mais claramente se nota a irônica paridade com o comentário feito a obra de Álvares de Azevedo que levantei ao princípio: o mundo do crime construído na obra se assemelha mais àquele cenário higienizado encontrado nos romances de enigma que à violência brutal, a justiça corrupta e a miséria pungente que surge de forma frequente na narrativa criminal brasileira.

Tal questão, novamente, não se nota na superfície. Há a presença de traficantes na obra, por exemplo. O crime central, bem violento, é um estupro seguido de assassinato, para o qual temos, já de início dois culpados cumprindo sentença: traficantes mirins que vendiam drogas na escola em que a vítima dava aulas. Se desenvolvendo de forma a mostrar que os sentenciados não eram os verdadeiros culpados, a investigação poderia ser uma oportunidade perfeita para tecer uma reflexão sobre a ação da polícia nas periferias, mas que acaba asfixiada por uma visão bem maniqueísta do problema das drogas na sociedade, novamente, mais típico do molde detetivesco que das representações nacionais do tema.

Desde, pelo menos, os anos 70, autores como Julian Symons apontam que a ficção detetivesca tradicional é majoritariamente conservadora. Ainda que críticos mais recentes tenham demonstrado que, muitas vezes havia espaço para críticas aos modelos sociais e criminais da época dentro do gênero, não podemos negar certa tendência, inerente à própria estrutura de retorno à ordem, de visão conservadora de mundo. Paisagens noturnas, talvez justamente por essa forte adesão às fórmulas do detetivesco, assumirá esse lugar com menos espaço para nuances em relação, sobretudo, às drogas. Centrando as ameaças do mundo das drogas na maconha, uma substância que, mesmo num Brasil ainda atrasado, vem encontra um debate na sociedade sobre benefícios e reais riscos, o narrador soa com certa frequência como essa voz conservadora a que se imputa o romance detetivesco clássico, fenômeno magnificado pela associação frequente ao mundo dos jovens:

O pior era que a maioria dos jovens preferia se drogar e se alienar a ter de lutar (p. 38)

Os jovens da modernidade tinham a liberdade de viver se esfregando uns nos outros e fazendo sexo como cachorros de rua. Na falta, ou mesmo diante da efemeridade do prazer, entregam-se às drogas (p. 50)

O narrador não raramente se mostra escandalizado com o uso da maconha, um choque que soa algo anacrônico nos dias de hoje, enquanto não parece desenvolver a menor reflexão negativa sobre o fato de que Alyrio transa com uma menor de idade drogada, mantendo suas preocupações mais na chance de a menina se instalar em sua casa do que no crime que acabara de cometer.

O narcotráfico surge apenas de forma distanciada, no “pavor que dominava alunos e professores por causa de marginais, verdadeiros vândalos que passeavam pelo bairro disparando tiros” (p. 30-31), cuja única encarnação são os jovens pobres que, na história, aceitam dinheiro para assumir a culpa pelos crimes. Para manter uma estrutura consolatória, é preciso tirar de jogo o problema social envolvido na guerra às drogas e a relação com a periferia, cujo fim não se daria na eliminação de um criminoso, como nossa polícia prova a cada incursão na favela.  Dessa forma, a escolha do criminoso também parece se inclinar ao modelo britânico tradicional: ricos excêntricos, marcados pelo desvio sexual normativo, que, depois de presos, podem ritualisticamente expurgar a imoralidade do seio social, restaurando a ordem da comunidade.

Um último aspecto que vale ser destacado na obra é a curiosa quase sobrenaturalidade em que se reveste a personagem Domitila, pintora da série de quadros que nomeia o livro. Trabalhando de forma inteligente um diálogo entre o tema artístico e o motivador dos crimes, a obra oferece, nessa personagem, um desvio em relação ao realismo estrito que se espera no gênero criminal: mais de uma vez, o narrador aponta para possibilidades de vidas passadas e intuições místicas por parte de Domitila. Tal fato é, também, de formas muito heterogêneas, um elemento marcante da narrativa criminal brasileira, que, mesmo absorvendo a superfície do discurso lógico racional do detetive clássico não raramente o coloca em cheque com fenômenos sobrenaturais, oriundos de superstições, milagres ou rituais.

Essa breve leitura nos ajuda a ver como, longe de uma assimilação automática das fórmulas do gênero detetivesco, mesmo os autores que se identificam profundamente com o dito romance policial operam, aqui – talvez de forma inconsciente – adaptações e subversões que revelam a forma como o gênero é lido e circula no ambiente nacional, nos ajudando a perceber nossas próprias concepções de justiça, verdade, crime e ordem em contraste com as estrangeiras. Fica minha recomendação para a leitura de Paisagens noturnas àqueles que desejem conhecer um autêntico whodunnit-hardboiled de um amador investigador profissional, um romance rico nas contradições que marcam nossa absorção rebelde e, por isso mesmo, criativa, da tradição detetivesca anglófona.

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2 comentários sobre “Resenha de “Paisagens noturnas”, de Vera carvalho assumpção (Pedro Sasse)

  1. Muito interessante a resenha e, provavelmente, o livro também! Parabéns à autora Vera Carvalho Assumpção e obrigada Pedro Sasse pela análise.

    1. Obrigado, Renata!

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