Resenha da série Fargo, de Noah Hawley (Pedro Sasse)

Chega, agora, ao final de sua quarta temporada, a série Fargo (2014), que herda seu nome do longa-metragem homônimo dos irmãos Coen de 1996. Apesar das pequenas referências ao filme, a série não pode ser considerada nem continuação direta nem um spin off da obra de que herda o nome, já que suas histórias e personagens independem daqueles vistos no Fargo original. Nem mesmo a cidade que nomeia o longa retorna como espaço central da série, que opta por manter a ambientação das pequenas cidades, mas explorar outros territórios no interior americano. Sem espaços, personagens ou eventos diretamente conectados, o que, então uniria esses dois Fargos?

A princípio poderíamos pensar tratar-se apenas de uma estratégia de marketing. Ao optar pelo nome Fargo, atrai-se para a série o prestígio de um filme que, para muitos, compõe o cânone do cinema norte-americano. Sem dúvida, o fator comercial pesa em uma decisão dessas. No entanto, Hawley consegue equilibrar-se bem entre justificar a conexão com o filme original e manter liberdade criativa o suficiente para não esgotar a série em um pastiche reciclado do longa-metragem.

O segredo, diríamos, reside numa visão coeniana de mundo, que ecoa ao longo de diversas de suas produções e cuja síntese se encontra na fala de abertura da primeira produção comercial dos irmãos, Gosto de sangue (1984): “Não importa se você é o Papa de Roma, presidente dos Estados Unidos, os mesmo o Homem do Ano – algo sempre pode dar errado”.

Assim, o que une a série Fargo ao filme é o mesmo fator que poderíamos encontrar de constância na trajetória cinematográfica dos diretores, seja em Fargo, O grande Lebowski (1998), O homem que não estava lá (2001) ou Onde os fracos não tem vez (2007) ou Um homem sério (2009): o poder inexorável do caos.

Todas essas obras compartilham entre si uma estrutura fundamental que segue os princípios da teoria do caos: sistemas ao mesmo tempo deterministas e imprevisíveis, em que uma ínfima condição inicial é capaz de criar variações drásticas ao longo do tempo – popularmente, um efeito borboleta.

Retornando ao mote de Gosto de sangue, o que temos, então, não são histórias de papas, presidentes ou homens do ano, mas histórias de erros, pequenos erros que colocam em movimento um complexo sistema caótico que levará, em última instância, a consequências devastadoras para as comunidades envolvidas em seu poder destrutivo.

A série, composta de quatro temporadas com histórias independentes (ainda que levemente conectadas), repete, a cada temporada, o mesmo ponto de partida: uma casualidade, um acidente, que colocará em movimento outras casualidades e acidentes, em uma espiral que vai, cada vez mais, abalando a rígida ordem das comunidades por ela atingidas.

Na primeira temporada, um veado cruza a pista e cria um acidente, levando o assassino Lorne Malvo a precisar parar na pacata cidade de Bemiji. Na segunda, outro acidente de carro leva a cabelereira Peggy Blumquist a atropelar um dos herdeiros da mais poderosa família do crime organizado da região durante uma transição de poder; na terceira, um ladrão é contratado para um roubo específico, mas deixa o endereço voar pela janela do carro e acaba invadindo a casa de outra pessoa com o mesmo sobrenome. E, na quarta, crianças brincando em um parque disparam uma bala de chumbinho que acerta o pescoço do líder da máfia italiana em Kansas City (apenas por curiosidade, todos os quatro acidentes ocorrem em carros).

Se o caos une as temporadas de Fargo, a forma como o crime é representado nas narrativas as dividirá em dois grupos. Nas temporadas ímpares, somos apresentados a uma visão do crime como elemento disruptivo, ou seja, seu surgimento se dá em espaços que praticamente desconhecem a criminalidade até que o acidente inicial os insira no sistema. O crime é, assim, condensado em uma personificação: o frio assassino Malvo na primeira temporada e o grotesco empresário V. M. Varga na terceira. Já nas temporadas pares, predomina uma visão do crime como elemento agregador: o crime faz parte do próprio funcionamento daquele mundo, operando por trás dos panos e criando uma rede que conecta de alguma forma todos os personagens da narrativa: na segunda temporada, a família Gerhart, de Fargo, e na quarta temporada o poder dividido entre a máfia negra, capitaneada por Loy Cannon, e a máfia italiana, liderada por Josto Fadda.

Ainda que o crime seja um aspecto central para essas histórias, e que vejamos nelas traços fortes sobretudo do gênero noir – alguns episódios são bem explícitos nessas referências, como “East/West”, na quarta temporada –, não podemos deixar de ressaltar o papel da sátira na série. Por um lado, sátira social, valendo-se de um humor mórbido para tecer comentários pungentes sobre o coração da sociedade americana. Por outro, sátira ao próprio gênero criminal, jogando com fórmulas e expectativas do detetivesco, do noir e da ficção de gângsteres, para mostrar como, ainda hoje, é possível se reinventar ao escrever narrativas criminais.

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