Resenha de Transition to murder, de Renee James (Diana Rodrigues)

Publicada inicialmente com o título Coming out Can be Murder, no ano de 2012, a obra a aqui ser resenhada ganha uma republicação no ano de 2014 com um novo título: Transition to Murder. A narrativa escrita por Renee James acompanha a vida de Bobbi Logan, uma cabeleireira Trans, participante de um Conselho LGBT, que decide assumir a sua transgeneridade para todos. Apesar de seus amigos mais próximos já terem ciência dos processos de transgenerização passados por Bobbi, esta anuncia em seu trabalho e para amigos e familiares mais distantes.

            O prólogo da obra retrata de forma explícita, antes mesmo de conhecermos Bobbi, o assassinato de Mandy, cometido por seu companheiro John Strand. Diferente de outras narrativas detetivescas o “quem?” e o “como?”, perguntas essenciais para a investigação cartesiana, nos são mostrados antes mesmo de conhecermos a trama principal da obra. O assassino e seu modus operandi já são conhecidos, levantando questões outras ao longo da trama.

            O modelo de investigação da personagem está totalmente voltado para a sociedade e questiona todos os problemas sociais envolvendo a comunidade Trans nos EUA. Bobbi narra de forma autodiegética a sua experiência enquanto uma mulher transexual lidando com amigos, colegas de trabalho, clientes e com a sociedade através da comunidade. O crime que vitima sua amiga desperta uma reflexão na personagem que vai, através de treze meses de sua rotina, quebrando conceitos e apontando o crime, enquanto ilustra um ponto de vista Trans sobre a transexualidade.

            Em primeiro plano, a obra aparenta tratar do crime cometido com Mandy, tendo Bobbi como investigadora. É narrado como a instituição policial pouco se importa com o caso pelo fato de Mandy ser uma pessoa Trans, sendo apenas um policial de nome Phill que tenta, contra os empecilhos colocados pela delegacia, realmente entender o que houve na cena do crime. Para os responsáveis da delegacia, Phill ou é LGBT, ou se relaciona com pessoas Trans, para ter interesse em resolver o caso, ainda tratam essas características como pejorativas e diminuidoras de caráter. Uma vez que o órgão responsável pela investigação possui tais problemas, Bobbi decide investigar por conta própria.

            Nos capítulos iniciais, Cecelia, advogada amiga de Bobbi, aponta John como o principal suspeito, informando que ele tinha um caso com Mandy, sustentava-a e a restringia de acessar seus antigos trabalhos e grupos de amigos. O modelo Whodunit já é descartado ali. Tanto os leitores quanto a investigadora já sabem quem cometeu o crime nos capítulos iniciais da narrativa. O que se investiga é o “como resolver?”. John Strand é um advogado renomado da cidade onde mora, amigo do prefeito e influente entre os poderosos do local, que são seus clientes. A obra deixa claro como em qualquer relação cis-Trans, a transgeneridade é tida como inferior. Quando se trata de uma pessoa Trans acusando uma pessoa cis-branca-padrão influente na cidade, essa diferença aumenta a níveis grosseiros. A investigação de Bobbi, portanto, não está em descobrir quem fez ou como fez, mas como provar de forma concreta que ele fez sem estragar as possibilidades de acusação.

            Em segundo plano, que mais parece o primeiro pelo espaço que ocupa, Bobbi faz um compêndio da transgeneridade. Uma narradora Trans para um narratário cis. A obra detalha minuciosamente eventos, características, projetos e sentimentos específicos da transgeneridade, quase como se ensinasse o que é ser uma Transmulher dentro daquele contexto. Seu gênero entra em relação com o trabalho, com a vida amorosa, com as amizades, com desconhecidos. Bobbi põe seu gênero para o mundo e explica como o mundo reage de volta. Todas as suas questões entram em evidência quando contrastadas com o John Strand, que representa o extrato da cisgeneridade hegemônica.

            É recorrente em literaturas de crime que tenham pessoas Trans como protagonistas/narradoras que o crime seja cometido por pessoas cis, mas não apenas cis, assim como possuintes de grande hegemonia social tanto em gênero, quanto em raça, sexualidade, origem, corpo. Narrativas Trans baseadas em crime, e Transition to Murder é um ótimo exemplo disto, usam o crime como denúncia dos privilégios concedidos à cisgeneridade mostrando que até a lei, que deveria ser para todos, é flexibilizada.

            Ainda demonstrando o contraste entre antagonista e protagonista, ao longo da narrativa, de forma destacada em itálico, encontra-se o ponto de vista de Strand. Desta maneira, não apenas aumentam-se as diferenças, como força-se o leitor a entender os fatos pelo olhar do assassino. Como ele lida com as cenas, como ele compreende cada passo e como planeja cada gesto é de ciência de quem está lendo. Ao mesmo tempo em que o leitor se confronta com os pensamentos violentos e com o “monstro” de Strand, se depara com as dificuldades e violências sofridas por Bobbi. Vê-se como é fácil para Strand se livrar de seus crimes ao mesmo tempo em que se vê o quão difícil é para Bobbi apenas existir ou frequentar alguns lugares.

            Enquanto a investigação evolui, também evolui a transição de Bobbi. A obra acompanha boa parte da trajetória da personagem. Iniciando no momento em que Bobbi se assume para o mundo, a obra acompanha ao mesmo tempo em que explica os procedimentos efetuados, as cirurgias possíveis, as sexualidades (ponto importante, uma vez que se tende a crer que uma mulher Trans obrigatoriamente se relaciona exclusivamente com homens, logo, é heterossexual, o que é uma ideia falsa, explorada na obra), as relações com a psicologia, com a medicina. Todas as situações pelas quais Bobbi passa são explicadas, como supracitado, “para cis ver”. Renee James faz, assim, uma obra de crime ao mesmo tempo em que faz um gerador de empatia para com a transgeneridade. Investigar ao outro é, também, investigar a si.

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